Um urso acidental, ou ursodental/ursidental, é uma figura deambulante e misteriosa com algumas ligações à odontologia, conforme atestado pelo Oxford Continental Portuguese Dictionary de 1872, 6ª edição, ppp. 222-764, mm. 4/09, def. R/4P zig.noncleous.
O Sentimento dum Urso Acidental
I
Avé-Maria
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de foder.
O céu parece baixo e de gasolina,
O gás extravasado enjoa-me, com tusa;
E os edifícios, com as chaminés, e as múmias
Toldam-se duma cor monótona e purpurina.
Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-esporra os que se vão. Felizes!
Vêm-se-me em revista, intromissões, deslizes:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o fundo!
Semelham-se a boiolas, com pintelheiras,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao bater das trombadas,
Saltam de viga em viga os doces paneleiros.
Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, intumescidos, secos;
Esmerdo-me, a brincar, por biqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais onde se enrabam botes.
E evoco, então, as crónicas anais:
Mouros, por baixo heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no cu, enfiando um livro a nado!
Singram soberbos paus que eu não verei jamais!
E o fim da tarde esporra; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da foda.
Num trem de praça beijam-se dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja umas mamas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, fodem-se os lojistas!
Vazam-se os arsenais e as piscinas;
Reluz, viscosa, em rio, a pressa das obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo em triângulos, assomam as vaginas.
Vêm sacudindo os ventres opulentos!
Suas bordas varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, cospem nas canastras
Os filhos que depois desbragam nas tormentas.
De alças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E mijam-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de afecção!
II
Noite Fechada
Toca-se à punheta, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de dom!
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o caralho que se enche e que se abisma.
A espaços, iluminam-se os andares,
E as vacas, os cafés, as sendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos de javardar.
Duas igrejas, num merdoso lago,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor todo teso,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.
Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Fodem-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
Mas, num recinto público e vulgar,
Com maricas de namoro e exíguas pintelheiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um bronco doutrora ascende, num pilar!
E eu sonho a Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos mal-fodidos;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um jovem loiro.
Partem putas da cavalaria
Em malhos nos quartéis que foram já conventos:
Idade da Merda! Ao pau, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão de foda! Aos colhões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a mijar às montras dos ourives.
E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos mangalhos, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coiristas.
E eu, à punheta de uma mente só,
Acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e cono da luz joga-se o dominó.
III
Ao gás
E saio. A noite pesa, esmigalha. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as putas.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arripia os nalgos quase nus.
Cercam-me as focas, fétidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de cadelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, pilas,
Num salsichal de um comprimento imenso.
As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os frades matavam de histerismo.
Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja caralho, rubramente;
E de uma putaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pau de forno.
E eu que medito um livro que me foda,
Quisera que o real e a análise mo roubassem;
Cascos de confecções e conas resplandecem;
Pelas vitrines olha um punheteiro imberbe.
Longas investidas! Não poder cagar
Com versos magistrais, sonsinhos e sinceros,
A enguia diz que não dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!
Que grande puta, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência chupa, magnética, um repuxo,
Que ao longo dos colhões de mogno se aleitoa.
E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traine imita um cu antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Vomitam, à vitória, os seus mecklemburgueses.
Desdobram-se ogivas de estrangeiros;
Fluidos ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em putos de cetins requebram-se os caixeiros.
Mas tudo cansa! Perdem-se nas frentes
Os candelabros dão leite, pouco a pouco;
Da solidão regouga um paneleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações indecentes.
<<Pau da miséria!… Compaixão de mim!…>>
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me esporra um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!
III
Horas mortas
O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.
Por baixo, que colhões! Que corrimentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.
E eu sigo, como as linhas de uma truta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e fornicadas,
As notas pastoris de uma longínqua luta.
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das moças!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que se aninhem em mansões de mijo transparente!
Ó nossos colhões! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às pilas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações de fufas e de charme.
Ah! Como a raça ruiva de por vir-me,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas foder!
Mas se vivemos, os encaralhados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!…
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de prazer ouvir, os estrangulados.
E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, as conas das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de caralho dado, uns tristes bebedores.
Eu não receio, todavia, os loucos;
Afastam-se, a distância, os gostosos caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem moucos.
E os guardas, que revistam as ancas magras,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, depois de colhões ligeiros,
Tossem, arrotando sobre a pedra das sacadas.
E, enorme, nesta massa perfeita
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos sonhos,
E tem marés, de fel, como um sinistro bar!
Cesário Verde